Véspera de Páscoa
por Leonardo Paiva
Era véspera de Páscoa.
O ônibus branco empoeirado seguiu até a frente do edifício de três blocos no topo da colina que dava para um descampado. O novo motorista gritou que aquele era o último ponto. Quatro mulheres desceram como fosse ensaiado: primeiro a esposa, depois a irmã mais velha, atrás vinha a irmã mais nova e, por último, a mãe. As rodas do ônibus esmagaram a terra no arranque da partida. As mulheres seguiram como arrastadas, brotando da nuvem de poeira que tinha se formado em frente ao portão de ferro do edifício. A esposa se dirigiu ao vidro escuro e se apresentou. Elas atravessaram o portão e entraram.
O homem atrás do balcão limpava a grande mesa de madeira onde ele cortava os alimentos dos que entravam. As goiabadas, as marmeladas, os pães, os bolos, os salames, os queijos, tudo com a mesma lâmina grossa e sem fio. Naquele sábado, as mulheres vinham em maior número e não traziam sacolas. O atrás do balcão perguntou se elas não tinham trazido comida. Envergonhada, a irmã mais velha disse que não traziam nada naquela véspera de Páscoa. A irmã mais nova não teve tempo de fazer o bolo. Uma delas voltaria no dia seguinte, traria um bolo, um doce para o irmão comemorar a ressurreição de Jesus. O atrás do balcão olhou para as quatro mulheres sentadas nos bancos duros alaranjados, olhou para as suas peças de roupas brancas mais que gastas, para as calças jeans mastigadas, para as sandálias de plástico branco pretas, imundas. Alguns outros visitantes sentados, esperando. Ele sabia – todos sabiam – o que as quatro mulheres estavam fazendo ali. Uma pergunta infeliz, por que sempre faz às mulheres da vez essa pergunta infeliz?, pensou o atrás do balcão esfregando o pano com álcool na grande mesa de madeira talhada.
Foram tocadas pelas mulheres das luvas brancas. Deixaram as quatro seguirem guardando o toque frio de quem fuça em boceta de morta.
No pátio aberto, ainda em fila, as mulheres seguiram a passos lentos sob vigia de atentos olhos de cães.
Entraram no pátio amuralhado onde eles recebiam as visitas. Atravessaram famílias sentadas sobre cobertores, atravessaram namorados abraçados sobre cobertores. Ele estava do outro lado, há uns quarenta passos da entrada. As famílias e os namorados sabiam – todos sabiam –, pois o número de mulheres era mais alto do que o permitido nas visitas. Todos sabiam que elas eram as mulheres da vez. Alguns olhos complacentes miravam as quatro atravessando o pátio como atravessassem o calvário – memórias de uma Sexta-Feira da Paixão. O filho, o irmão, o esposo as recebeu ansioso, como as aguardasse há muito. Ofertou o cobertor. As quatro se sentaram, cruzaram as pernas e, caladas, esperaram. Era preciso que as outras visitas fossem embora: era preciso esperar.
As visitas iam se despedindo: o sol já despencava. Poucos cobertores resistiam aos últimos minutos de encontro. Então os homens deram o sinal e gritaram que a visita tinha terminado. Somente as quatro mulheres e o homem ficaram sentados, esperando. Uns últimos abraços se deram no pátio. Fecharam o portão. Um homem gritou para as mulheres que daqui a pouco eles chamavam. As quatro consentiram com a cabeça, uma e outra, constrangidas, riram dolorido: era preciso esperar.
Esperaram.
Os homens armados desapareceram nos corredores escuros. Apareceram os outros homens, oito no total. Vieram, pediram para ele se levantar e cair fora. Ficaram sozinhos com as mulheres. Uns carinhos nos pescoços, nos seios, nas ancas. Pediram que elas os seguissem. Um perguntou se até a velha. Outro respondeu que até a velha: eles não eram de dispensar.
Quatro mulheres e oito homens caminhavam no corredor. Um apontou que o aposento era aquele na frente. As mulheres entraram, os homens logo atrás. Um disse que elas passariam a primeira noite de muitas outras no cinco estrelas.
Os oito homens se serviram das quatro mulheres. Às vezes um, às vezes dois, às vezes três em uma. Só no cinco estrelas se ouviam gemidos e choros. Enquanto eles se serviam, elas pensavam no filho, no irmão, no esposo – era por ele que elas se entregavam à matilha.
De madrugada começou a chover.
Amanheceram espremidas no canto da parede. Um dos oito chamou o que fazia a ronda, disse que podiam tirar as quatro dali. Um disse para elas se levantarem, que podiam ir embora, teriam outra oportunidade de dormirem no cinco estrelas, que não fossem se apegando. A esposa e as irmãs se levantaram nuas, tontas, uns roxos e uns cortes pelo rosto, marcas de dentes pelos seios, pelas nádegas, pelas virilhas. Recolheram as roupas espalhadas pelo cinco estrelas e se vestiram apressadas. A esposa disse que, de tão exausta, a mãe dormia. A irmã mais nova foi até a mãe, a velha em posição de cócoras dura no canto da parede. Os homens disseram que elas estavam demorando, que era para pegar as tralhas e dar o fora. A irmã mais velha pegou as roupas da mãe e disse para ela se vestir. A esposa disse que a mãe não estava respirando. Um disse que era impressão, a velha estava boa, era só dar um puxão bem dado que ela erguia o corpo e saía pianinho. Puxou o braço da velha, a velha caiu com a cabeça de lado, o olho aberto e roxo, o nariz sangrando. O da ronda ouviu a conversa, apareceu perguntando como eles iam dar conta daquela velha morta, dar conta do que as outras mulheres espalhariam lá fora. Desesperadas as três disseram que ela não estava morta, só estava descansando, que dessem um tempo para ela se recuperar. Um disse que era verdade, dava para ver o peito magro da velha zica subindo, descendo, era só olhar direito. O da ronda disse que eles eram uns filhos da puta, que teriam que se ver com o chefe. Um disse que o chefe era ele: o que os sete homens resolvessem ficaria decretado. Não tinha ninguém que desdissesse a sua palavra.
Ao meio-dia, sob uma chuva que lancinava, quatro mulheres deixaram o edifício de três blocos no topo da colina que dava para um descampado.
Leonardo Paiva nasceu em Pedralva (MG) e atualmente vive em Campinas (SP). “Véspera de Páscoa” foi publicado em “O mar não sofre coisa morta” (Editora Moinhos), livro de estreia do autor.