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CÉSAR AIRA COMO ESCRITOR CARIOCA
 
Joca Wolff*

Por que publicar César Aira no Brasil? E por que não? E como não? Nenhuma delícia e nenhuma ideia a menos para o Brasil – aliás, nunca estivemos tão precisados. Que venha então a sua obra inteira, a qual já passa dos cem títulos, a grande maioria por pequenas editoras da América Latina.

            Se a extensa obra de Aira detém hoje o maior interesse no país, a literatura argentina – outras escritoras, outros escritores – também têm sido constantemente vertidos ao brasileiro, ainda que de modo intermitente. São dois países, por sinal, em constante tradução, em permanente contraste, relação e choque tanto de ordem social e cultural quanto econômica e política. Apesar de sua abismal diferença, a linguística e colonial à frente, os intercâmbios no campo da literatura têm um ponto alto já na década de 1920 quando Mário de Andrade resenha agudamente a poesia e as Inquisiciones do jovem Borges. A recíproca não teria sido verdadeira, segundo o próprio Aira, em artigo de 1986, cujo título diz tudo: “Desdeñosa ignorancia por la literatura del Brasil”. Ainda assim no breve artigo ele já tocava num pioneiro lugar de trânsito na universidade argentina através de Susana Zanetti, abrindo uma fresta que cresceria mais e mais nas últimas décadas, com a chegada em novas traduções de Graciliano a Guimarães Rosa, de Clarice a Leminski, de Dalton Trevisan a João Gilberto Noll, de Ana Cristina César a Sérgio Sant’Anna – este traduzido pelo próprio Aira.

            Quanto à chegada de César Aira no Brasil, ela foi se dando de mansinho, primeiro pela via paulista: Samuel León, editor da Iluminuras, foi quem o publicou inicialmente, com O vestido rosa na antologia Nova narrativa argentina ainda em 1990 e mais tarde com A trombeta de vime (2002), quase sem repercussão. Já a via carioca lhe seria mais fértil, com Carlito Azevedo, tradutor do relato Haikus e autor do ensaio 13 variações sobre César Aira, à frente. À via carioca ousaríamos fundir a vertente catarina, a partir da tradução de Nouvelles impressions du Petit Maroc em edição de 2011 da Cultura e Barbárie: Florianópolis – asseguram certos nativos  da ilha – tem mais a ver com o Rio de Janeiro por sua cultura praieira e suas escolas de samba do que com Blumenau ou Chapecó, e lhes damos razão.

            Uma década antes e desde Florianópolis, eu havia me exercitado com a tradução de fragmentos do Diário da Hepatite na revista Medusa de Curitiba em 2000, o qual será finalmente publicado na íntegra por Rafael Copetti Editor, também de Florianópolis. Se não houve maior repercussão, houve repetição no sentido lato da palavra: seus textos seguiriam sendo avidamente traduzidos em Santa Catarina e no Rio de Janeiro, tanto por grandes editoras (a Rocco e a Nova Fronteira) quanto pelas pequenas (Papeis Selvagens e Zazie Edições). Mas isso em termos editoriais, porque ao menos desde os anos 90 e desde Florianópolis o crítico argentino-brasileiro Raul Antelo vem lendo e disseminando os textos de Aira – e de muitos outros – como professor e pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina, com especial atenção ao programa neo-dadaísta do autor de Dante e Reina, que foi seu colega no Colegio Nacional na Buenos Aires dos anos 60. Aliás, em ensaio recente dedicado a Aira, Antelo arranca dizendo que a estética do escritor põe na mesa de dissecção antes o problema da repetição que o da representação: ver o e-book O congresso de literatura. Ensaios sobre César Aira. Org. Laura Erber e Victor da Rosa. Rio: Zazie Edições, 2019; com Sandra Contreras, Raul Antelo, Karl Erik Schollhammer e Victor da Rosa.

No Rio de Janeiro foram publicadas, entre 2007 e 2019, Un episodio en la vida del pintor viajante, Las noches de Flores, Haikus, Cómo me hice monja, Los fantasmas, Continuación de ideas diversas e El santo (os últimos três em tradução nossa). Também no Rio a Zazie publicou Sobre a arte contemporânea e aqui e acolá estão traduzidos vários esparsos de Aira. Acrescente-se que acabamos de publicar nossa versão de Dante e Reina (2020) pela Micronotas de Joinville, em caprichada edição, e que também acabamos de traduzir as belíssimas Pinceladas musicales (Blatt&Ríos, 2019), a sair pela editora Cultura e Barbárie desta ilha do Desterro, onde nasceu o poeta Cruz e Souza, que Aira coloca “sem exagero” no mesmo nível de Baudelaire. A mesma editora “rousseliana” (como ele a definiu) que publicou em pequenas edições suas Três lendas pringlenses, Picasso, Em Havana e Raymond Roussel: A chave unificada.

            As razões, portanto, para publicar no Brasil toda a prosa fabulosa do bruxo de Flores e de Coronel Pringles se concentram no puro prazer da leitura. Leitura e tradução – que são o mesmo em nosso caso – de suas fábulas disparatadas e delicadas, capazes de nos fazer rir e pensar, ao mesclarem a viagem da poesia e da evasão e a vertigem da crítica das formas de vida e morte do presente.

Jorge Hoffmann Wolff  ou Joca Wolff, 1965. Possui graduação em Filosofia (1993), mestrado em Teoria Literária (1997) e doutorado em Teoria Literária (2002) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É professor adjunto de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária e Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: crítica cultural, crítica literária e teoria da modernidade. É membro do Núcleo de Estudos Literários e Culturais (NELIC) e do Núcleo Juan Carlos Onetti de Estudos Literários Latino-americanos, ambos da UFSC.

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